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20 janeiro 2016

Se não fosse assim, não seria eu...


Estou aqui ouvindo mil vezes a mesma música da Clarice Falcão (Capitão Gancho). Ela é curtinha, tem menos de dois minutos, e nela a cantora narra pequenas, mas relevantes situações que fizeram parte de sua infância e contribuíram para que ela se tornasse o que é. Então, fico eu aqui refletindo mais um pouco sobre a existência, sobre essas malas cheias de memórias e lembranças que também me trouxeram até aqui. E são tantas.
O que haveria de tão importante nesse amontoado de recordações, que foram imprescindíveis para refletir no espelho da minha história aquilo que realmente sou. E quão surpresa eu fico em perceber que cabe tanto dentro desse  baú.
Eu e essa mania de lembrar-me de tudo como um gravador. Mas como diz Clarice, se não fosse assim, não seria eu.  A última filha de uma família de oito irmãos, com tantas mãos e olhos, cheias de cuidados e mimos que só uma caçula pode dizer. Proteção, carinho e zelo.
Quando menina, ia sempre viajar com minha mãe para Jacareí, onde moravam meus avós. A viagem começava com a minha carinha colada na janela do ônibus. Via aquela paisagem, montanhas, céus multicoloridos e bois pastando pela estrada. Parecia mesmo que estava hipnotizada diante da magnitude daquela beleza verde que nos acompanhava. Na rodoviária, uma parada para o lanche e a vitamina que mamãe fazia questão de tomar: banana e maçã (sem casca, por favor) com leite.
Nas ruas, eu corria e pulava contra o vento, que parecia ter combinado comigo que estaria ali, naquela mesma rua e na mesma hora. Como eu gostava de senti-lo bagunçando tudo em mim.
O caminho secreto que nos levava seguia a linha do trem e por eles podíamos caminhar, pulando as tábuas, brincando com a distância. Tudo isso tornava o caminho bem menor do que realmente era.
A casa de meu avô era mesmo um incrível castelo de sonhos. O cheiro do cigarro de palha deixava o ambiente um pouco assustador e vovô Henrique com cara de mau.  Ele insistia em oferecer um colo que eu, chorosa  recusava, mas ele tinha um relógio de bolso incrível que acabava ganhando minha atenção. O bolo de vovó Lilia esperava quentinho para o café e os beijos carinhosos afastavam de mim o receio de estar ali.
No quintal, a escada nos levava para um porão encantado, onde montes de areia se transformavam em grandes montanhas, uma antiga árvore em uma floresta e a brincadeira com os primos em um conto mágico. Coisa de quem desde muito cedo tinha a imaginação fértil.
Da janela do quarto dos fundos, a festa era ouvir os apitos do trem que passava rente a casa fazendo com que meu coração vibrasse no mesmo ritmo.
Voltei à mesma casa nesse período de férias depois de tantos anos e que surpresa ao perceber que tudo parece menor do que realmente era aos meus olhos infantis. O ambiente diminuiu e a emoção aumentou em poder estar ali. Tudo parecia no mesmo lugar, exatamente onde moram minhas recordações.
Ainda gosto muito de ficar olhando pelo vidro do ônibus enquanto penso na vida, sou apaixonada por montanhas e adoro o vento bagunçando meu cabelo. Cheiro de café me alucina e me emociono quando vejo um vapor sair de um bolo quentinho. Crio histórias mágicas até hoje nessa cabecinha de vento e o cheiro de cigarro de palha ainda me incomoda, porém viajo nos relógios de bolso antigos.
Certa vez, no centro de Guaratinguetá, parei para ver o trem e não arredei o pé enquanto ele não terminou de passar. O som dele nos trilhos me paralisou e minha filha ficou olhando sem entender nada.
Pois é, tudo que há em mim são frutos dessas descobertas infantis. Tantas outras histórias, tantas memórias que fizeram ser quem sou. Clarice Falcão tem razão, se não fossem elas, não seria eu...

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